A startup do Diabo

Felipe Dias
7 min readJul 28, 2021

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Um conto empresarial diabólico

Conta um velho manuscrito apócrifo que Deus, certo dia, resolveu criar uma empresa para organizar as questões celestes na terra. Como a população havia crescido muito e os anjos não, continuavam na mesma quantidade desde a criação, precisava ser mais eficiente para atender as inúmeras demandas do mundo. Muitas demandas vindas de todo lado se acumulavam sem ordem no saguão do céu. Era um empilhamento sem fim de orações, cânticos, louvores e agradecimentos. Só não era visto por ali nenhum sacrifício, jejum, pagamentos de votos, que eram diretamente levados para o aterro sanitário celeste assim que chegavam por lá.

O Todo Poderoso, que era dado à organização, tratou logo de criar uma empresa bem amarrada, preocupada com conformidade e compliance. Ordenou que desenhassem e documentassem os processos, criou manuais e treinamentos. Tinha até certificação ISO. A equipe contratada tinha metas, participação nos lucros, vale refeição, vale alimentação, previdência e tudo mais que o mercado praticava. Com isso, a empresa conseguiu organizar as demandas, que eram categorizadas e direcionadas rapidamente para os setores responsáveis.

Entretanto, nem tudo funcionava como Deus planejara. Mesmo a empresa funcionando relativamente bem, percebia-se frequentemente algumas violações. Havia sempre alguém que, em dias mais apertados, fingia preencher o checklist, marcando tudo com um “sim” ou, que era mais comum, deixando uma questão menos relevante como “não”, para não chamar tanta atenção assim. Outras vezes fingiam fazer aquele curso obrigatório, preencher aquele controle e até mesmo batiam o ponto para um ou outro colega que ia se atrasar alguns minutos. Deus, onisciente, não se incomodava com isso e entendia que fazia parte do negócio.

No entanto, o Diabo, astucioso e visionário como só, percebeu todas aquelas distorções na empresa divina e enxergou ali uma oportunidade de mercado.

— É óbvio que toda aquela empresa engessada gerava insatisfação nas pessoas que trabalhavam lá, que por consequência produzia atritos no atendimento aos usuários — pensava ele.

Por vezes era possível ouvi-lo bradar aos sete ventos que não sabia como as pessoas aguentavam trabalhar em uma empresa chata daquelas. Diante disso, ele, o Diabo, teve a ideia de abrir uma concorrência. Afinal, ele vinha sendo esquecido pela humanidade desde que Deus veio com aquela conversa de perdoar todo mundo, de salvação pela graça e outras jogadas do marketing dos céus. Ele queria um inferno moderno, digital, que oferecesse serviços demoníacos de ponta, cem por cento focado no usuário.

O Belzebu, com sua mania de ser exibicionista, quiz então ter com Deus para lhe contar sobre seu plano e o chamou em uma call:

— Salve vossa divindade! Eu lhe chamei para dizer que estamos voltando para o mercado. Vou criar nossa startup, com mindset ágil que vai desbancar este seu servicinho aí. Esse céu está mais parecendo uma repartição pública, ninguém aguenta isso mais não, Jeová! O mundo evoluiu. As pessoas só continuam lhe procurando porque ainda não tem algo mais simples no mercado. — provocou o Diabo.

— E você veio me pedir conselhos, mentorias ou só me atazanar, Lúcifer? — retrucou Deus

— Só vim contar meu plano, para lhe dar alguma chance de competir comigo. — respondeu o Diabo às gargalhadas.

— Olha Lúcifer, vá com calma! Estamos no mesmo mercado e talvez até haja espaço para isso, mas lidar com pessoas não é simples assim, você sabe.

— O Senhor é mesmo um baby boomer celeste, tem muita dificuldade para aceitar o novo, é resistente a mudanças. Eu vou lhe mostrar o que é crescimento exponencial, aprenda comigo se quiser crescer de verdade! — Disse o Capeta com um sorriso no canto da boca.

Depois da call, o Capiroto partiu logo para colocar seu plano em prática. Chamou uma empresa de design thinking, uma agência de marketing e uma aceleradora de negócios. Fizeram o redesing dos produtos e um rebranding das marcas da empresa. Despois de uma semana de design sprint com muito mapa mental, post-it, café e caneta hidrocor, Satanás foi fazer o pitch para seus sócios:

- Esqueçam tudo que vocês conhecem sobre as profundezas! — disse ele com tom confiante a altivo — Construímos um novo conceito, disruptivo e inovador, o “inferno como serviço”. Isso mesmo! Inferno como serviço. O conceito é simples, agora, ao invés de comprar almas nós vamos alugá-las, sim alugar, muito melhor! Só vamos pagar pelo tempo que usarmos. A pessoa não precisa mais vender sua alma para o Diabo, quero dizer, para mim, para ter algum favor em troca, pode só alugá-la e continua dona dela. Além de resolver nosso problema de almas obsoletas, vamos rodar com um custo bem menor. Depois, vamos também poder intermediar o serviço de locação de almas. Outras entidades metafísicas que precisem de almas podem entrar no nosso app e encontrar as pessoas que estão dispostas a alugas as suas e nós ficamos com uma parte da transação. Tudo simples e sem burocracia. Vamos nos tornar um marketplace de almas! Recorrências, meus amigos, recorrência.

Ele foi ovacionado pela audiência, todos consideraram aquele modelo de negócios uma grande ideia, digna de um unicórnio. Os demônios quiseram partir logo para a execução. O Tinhoso mandou reformarem correndo o prédio, nada de salas, tudo aberto. Colocou uma área de convivência fantástica, com tobogã, piscina de bolinhas, videogame, sinuca e um café com diversas bebidas e snacks variados, até paçoquinha era liberada. Criou slogan, mascote e tudo mais que estava na lista para uma empresa descolada.

Como era de se esperar, o resultado foi fora do normal. A empresa passou a crescer muito, cada vez mais pessoas queriam usar os serviços infernais. Imagina, agora nem vender a alma precisavam mais. Tudo prático, rápido, sem burocracia.

O problema é que o inferno passou a ter muitos usuários, apesar de não ter clientes. O negócio não gerava lucro, mas a empresa do Diabo crescia e batia suas metas de growth e para ele o que importava era isso, pensava em equity. Entretanto, com o crescimento da demanda, a empresa do Diabo começou a contratar mais gente, crescer o quadro. Quanto mais crescia, mais o Satã tinha a sensação de que as coisas não estavam mais saindo como planejado. Apesar disso, fazia vista grossa, porque tudo parecia funcionar relativamente bem. O estopim que o tirou do lugar de inércia veio quando sua empresa não ficou bem ranqueada na pesquisa da GPTW. Como assim? Ficamos atrás até da empresa daquele velho rabugento?

Inconformado com isso e sem entender o que se passava, o Diabo foi até o purgatório pedir ajuda a alguns consultores. Deus os havia colocado lá para serem responsáveis pelo trabalho com as almas em recuperação, pois ninguém melhor do que um consultor para nos fazer pagar pelos nossos pecados. Os consultores foram então investigar o que acontecia por meio de um diagnóstico e ficaram surpresos com o que encontraram. Havia um submundo desconhecido na empresa do Diabo. Se por fora o que se via era um ambiente descolado, flexível, descontraído, nas entranhas da organização uma empresa paralela surgia. Diversas distorções estavam presentes, como o controle de horas trabalhadas que várias pessoas faziam escondido. Encontraram em pastas ocultas nos computadores vários processinho mapeados, checklists, manuais e até uma biblioteca de “control C, control v”. Alguns tinham contratado para si planos de previdência conservadores e, pasmem, naqueles bancos tradicionais. Os que iam muito para a sala de convivência recebiam apelidos e eram vistos como preguiçosos. Detectaram, ainda, inúmeros líderes que faziam acompanhamento rígido da rotina e produção das pessoas e que de vez em quando davam uma incerta, para saber se a equipes estava de fato trabalhando nos projetos. Para piorar, a pesquisa de satisfação mostrou que a maioria estava insatisfeita com a remuneração porque a empresa não oferecia vale alimentação e vale refeição.

Tudo isso chateou bastante o Diabo, mas o que o deixou mesmo inconformado, enraivecido e emputecido foi saber que vários dos seus pupilos estavam se candidatando ao processo trainee que empresa divina, acabara de abrir. Isso ele não podia aceitar! Como assim? Com um ambiente tão bacana, moderno, jovem, por que as pessoas queriam trocar sua empresa por aquele dinossauro celeste? Queria saber o que Deus estava aprontando. Estava certo de que só poderia ser uma de duas alternativas, ou Ele estava pela primeira vez na eternidade intervindo no livre arbítrio ou estava implantando na sua empresa um programa de transformação digital. O Sete-peles precisava saber o que era. Indignado, ele foi ter com Deus pessoalmente e ao chegar ao céu, foi logo indagando:

— Que palhaçada é essa Deus! Concorrência desleal? Você nunca foi de intervir no livre arbítrio e agora plantou em todo mundo o desejo por processos, modelos, rotinas, padrões, estabilidade? Não esperava isso de vossa divindade, que vive sempre cuspindo por aqui que valoriza a ética e a livre concorrência.

Então, Deus, com aquela voz mansa e sábia de CEO das alturas, virou para o Diabo e lhe disse.

- Pobre Lúcifer, depois de milênios você deveria ter aprendido algo sobre os humanos, mas não aprendeu. Não se lembra de Adão? Com tanta fruta no Éden, com uva, manga, jabuticaba, ele cismou de comer logo a que eu tinha proibido, lembra? E olha que a jaca nem era tão boa assim, mas essa é a natureza deles. Os humanos desejam o que lhes falta e se saciam rapidamente daquilo que lhes é abundante.

Inspirado no conto “A Igreja do Diabo” de Machado de Assis, mas sem o talento do escritor.

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Felipe Dias
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Written by Felipe Dias

Consultor pela Néos (neosdesenvolvimento.com.br), Psicólogo, MBA em pessoas pela FGV e mestre em psicologia (UFSJ). Skype felipsdias Insta: felipe.neos

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